MEMÓRIA


RETALHOS

Biscoito assando na lembrança
gosto doce derretendo em boca de criança.
Mãos combinando elementos,
amassando histórias, amaciando dores,
pincelando risos.
Mãos calejadas, rudes mãos
Preparam a massa, trabalham o chão
Tecem o fio que vai comprido,
do gosto ao gesto,
do doce à flor.
Doces no tacho, frutas no cacho.
Biju, pamonha, tutu, pirão,
fio e crochê,
retalho e colcha.
Mãos de saber,
mãos de poder,
mãos de avó,
cozinha de lembranças.
Muda o tempo,
outro gosto, novo gesto, riso gasto,
sonho incerto.
Tanto amanhã, espreitou no tempo e
o que mudou?
O hoje é pouco que fora tanto
e quer voltar.
Que gosto amargo é não mais ter...
Que mãos foram essas que mal
sabiam acariciar.
Que tais carinhos soube fazer,
que mágica plantou,
semente tão viva assim?
Assou esperanças, fiou saberes, teceu amores
e entreteceu profundamente,
marcas no ser que hoje sou eu.

Fátima França


Festa Junina no Rancho Alegre, no Olavo Bilac em 1948


O DOM DA HISTÓRIA

O grande sábio Bal Shem Tov estava à morte e mandou chamar seus discípulos.

- Sempre fui o intermediário de vocês e agora, quando eu me for, vocês terão de fazer isso sozinhos. Vocês conhecem o lugar na floresta onde eu invoco a Deus? Fiquem parados naquele lugar e ajam do mesmo modo. Vocês sabem acender a fogueira e sabem dizer a oração. Façam tudo isso, e Deus virá.

 Depois que o Bal Shem Tov morreu, a primeira geração obedeceu exatamente às suas instruções, e Deus sempre veio. Na segunda geração, porém, as pessoas já haviam esquecido de como se acendia a fogueira do jeito que o Bal Shem Tov lhes ensinara. Mesmo assim, elas ficavam paradas no local especial da floresta, diziam a oração, e Deus vinha.

 Na terceira geração, as pessoas já não se lembravam de como acender a fogueira, nem do local na floresta. Mas diziam a oração assim mesmo, e Deus ainda vinha.

 Na quarta geração, ninguém se lembrava de como se acendia a fogueira, ninguém sabia mais em que local exatamente da floresta deveriam ficar e, finalmente, não conseguiam se recordar nem da própria oração. Mas uma pessoa ainda se lembrava da história sobre tudo aquilo e relatou em voz alta. E Deus ainda veio.

 Clarissa Pinkola Estés, em “O dom da história –
uma fábula sobre o que é suficiente”.

Inauguração da Escola Proletária de Merity, atual E.M. Dr. Álvaro Alberto.
Primeiros alunos matriculados (1921)


GUARDAR


Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso, melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que de um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

Antônio Cícero